Preciosidades

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Assombrações. Luís Fernando Veríssimo


Todos na roda tinham uma história de assombração para contar. Algumas conhecidas, até clássicas, embora o narrador jurasse que tinha acontecido com ele. Como a história da moça muito pálida.

- Conheci num bar. A palidez dela era impressionante. Ela vestia uma roupa estranha, fora de moda, e seu penteado também era de outra época. Mas era bonita, muito bonita. Bonita e pálida. Bebemos, conversamos, levei ela para o meu apartamento e fizemos amor a noite inteira. A pele dela era fria, gelada, mas ela era um furacão na cama. Era como se não tivesse feito amor há muito tempo e estivesse tentando recuperar o tempo perdido. Um furacão insaciável. Depois eu quis levá-la em casa mas ela não aceitou. Tive que insistir muito para ela me dar seu telefone. Ficamos de nos encontrar de novo àquela noite, no mesmo bar. Quando ela não apareceu, liguei para o número que ela tinha me dado...

- E era o número do cemitério.

- Eu já contei esta história?

- Você não, mas muitos outros já.

- Juro que é verdade!

- Continue. Talvez a sua versão seja diferente.

-Atendeu um homem que disse que era do cemitério. Perguntei se alguém chamado Lívia trabalhava lá. O nome que ela me dera era esse, Lívia. O homem disse que não. Aí me deu o estalo. Perguntei se ele sabia de alguma Lívia enterrada no cemitério. Ele disse que havia uma Lívia, sim, num túmulo muito antigo...

- E disse "Não me diga que ela fugiu de novo, vou ter que botar uma laje mais pesada."

- Não. Sério. Disse que o túmulo era de uma moça, segundo ouvira contar, muito bonita, que morrera poucos dias antes da data do seu casamento.

- E aí você perguntou se ela por acaso não tinha celular.

- Já vi que vocês não acreditaram na história.

- Acreditamos, acreditamos. Todas as vezes.

Outra história foi a do acampamento. A Carol contou que uma vez fizera
acampamento com um grupo de amigas e que depois de cantarem e trocarem histórias de horror em volta do fogo, pois tinham ouvido falar que a área em que estavam fora um dia um cemitério de índios, cada uma se metera no seu saco de dormir. Ela não conseguira dormir e travara o seguinte diálogo com a Avani, deitada ao seu lado, no escuro:

- Você acredita em fantasmas, Avani?

- Não.

- Eu também não. Mas...

- Mas o quê?

- Mas acho que eles existem.

- Se você não acredita neles, como é que acha que existem?

- Pois é, não sei. Só sei que estou com medo.

- Não seja boba. Vamos dormir.

- Acho que não vou conseguir.

- Vai sim.

Minutos depois:

- Avani...

- Ahn.

- Passou o medo.

- Que bom.

- Obrigado, viu?

- Por quê?

- Por segurar a minha mão. Me deu muito mais confiança.

Novo silêncio. Depois, a Avani:

- Carol, eu não estou segurando a sua mão.

O grito da Carol ainda ecoava na floresta e todo o grupo já estava dentro da Kombi, disparando do acampamento e deixando tudo para trás, inclusive os isopores e o violão.

Mas a história mais fantástica quem contou foi a Bea. Contou que uma tia dela, que ela nem conhecera, fazendeira rica, tinha uma empregada que tratava muito mal. Uma pobre coitada, cria da estância, chamada Bibica, que passara a vida trabalhando como escrava e ainda ouvindo os desaforos da patroa, uma matriarca rural do velho estilo. A Bibica morrera de desgosto e maus-tratos e sua alma voltara para se vingar da velha, assombrando a casa.

Todos os dias o quarto da velha aparecia misteriosamente arrumado, por mãos invisíveis. O fogão se acendia espontaneamente e os pratos de comida feitos por ninguém iam e voltavam da mesa flutuando no ar, a roupa era lavada e passada sem que ninguém a tocasse. Aterrorizados, todos os outros empregados fugiram da casa e nenhum parente visitava a velha, com medo da assombração.

Como visitar uma casa em que a porta da frente se abria sozinha para recebê-los e os pratos do café da manhã chegavam na mesa voando? Mas decidiram que aquilo não poderia continuar assim, a velha sozinha dentro de casa com um espírito vingativo, e pediram para um padre exorcizar o fantasma. O padre foi visitar a velha, sentou-se na sala de estar, começou a dizer que vinha oferecer o consolo de Deus e seus serviços como... quando foi interrompido por uma xícara de cafezinho que entrou na sala suspensa no ar, e ouviu a velha dizer "Anda mais depressa, ó traste!" para ninguém.

Depois contou que a velha recusara sua proposta de excomungar o fantasma
porque, com a fuga dos outros empregados e com a Bibica, incorpórea, fazendo tudo noite e dia, pois fantasma não precisa dormir, estava economizando como nunca, e feliz.

- Ela só sente falta de alguém sólido para bater com o chinelo - contou o padre, convencido, segundo a Bea, de que em certos lugares do mundo não há justiça nem nesta vida nem na outra.


P.S.: texto repassado via e-mail, cuja autoria é atribuída ao Luís Fernando Veríssimo.

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