Preciosidades

domingo, 8 de novembro de 2009

MEDO - Sombras da infância. Julio Cortázar


Interrogar-me sobre o medo em minha infância é abrir um território vertiginoso e cruel que inutilmente venho tentando esquecer (todo adulto é hipócrita frente uma parte de sua meninice), mas que volta em pesadelos noturnos e noutros pesadelos que fui escrevendo sob a forma de contos fantásticos. A casa de minha infância estava tomada de sombras, recantos, andares e sótãos, e ao cair da noite as distâncias se tornavam desmedidas para este menino que devia ir ao banheiro atravessando dois pátios, ou trazer o que lhe pediam de uma dispensa remota. Sagas sangrentas de assassinos circulavam nas conversas de família após o jantar, o subúrbio transbordava de ladrões e vagabundos perigosos, mas isso tudo, que compreensivelmente aterrorizava minha mãe, somente incidiu marginalmente em meus medos. Numa idade que não consigo fixar, a solidão e a obscuridade desencadearam em mim outros temores jamais confessos; animalzinho literário desde então, o terror me chegou pelas leituras e não de crônicas vivas, inclusive nestas leituras o vórtice do pavor foi sempre a manifestação do sobrenatural, do que não se pode tocar, nem ouvir ou ver com os sentidos usuais, e que precipita sobre a vítima uma dimensão fora de toda lógica.


Assim, desarmado, nunca pude refugiar-me na confissão do temor que os mais velhos às vezes compreendem, ainda que quase sempre a rechacem em nome do senso comum, da hombridade e de outras cretinices; desde muito jovem tive que aceitar minha solidão nesse terreno ambíguo, onde o medo e a atração mórbida compunham meu mundo da noite. Consigo precisar hoje um marco seguro: a leitura clandestina, aos oito ou nove anos, dos contos de Edgar Allan Poe. Ali o real e o fantástico (digamos a rua Morgue e Berenice, o gato negro e Lady Madelaine Usher) se fundiram num horror unívoco que realmente me contaminou durante meses e do qual jamais me curei de todo. O folclore argentino também fazia das suas, através de tios e primas: o lobisomem, por exemplo, a possibilidade monstruosa do licantropo cada vez que me mandavam buscar algo no jardim em noite de lua cheia. Pouco me atemorizava a idéia de um criminoso que pudesse me apunhalar ou estrangular na sombra; esse criminoso estava do meu lado, inclusive minha ingenuidade me levava a crer-me capaz de defesa, com um direto na mandíbula ou uma patada letal. O medo era o outro, isso que a literatura anglo-saxã chama tão admiravelmente de the thing, "a coisa", o que não tem imagem nem definição precisa, roçar furtivo no cabelo, mão gelada no pescoço, risada percebida do outro lado de uma porta entreaberta. Contra isso não havia resposta possível senão correr, cumprir o encargo a toda velocidade e regressar sem alento para recolher irrisoriamente grandes elogios por minha diligência.


Meus companheiros de escola e de futebol tinham medo do que genericamente chamavam de fantasmas, que extraíam de relatos familiares e de péssimos novelões góticos. A idéia do fantasma típico, com lençol branco e ruído de correntes, nunca me preocupou; podia admitir sua existência, e até admitia, mas estava quase seguro de que não se incomodariam em manifestar-se, achava-os demasiadamente estereotipados e repetitivos. Minhas leituras pouco controladas pelos adultos caminhavam infalivelmente para formas mais sutis do sobrenatural e do mórbido; literatura da catalepsia e do sonambulismo, por exemplo, que abundava nas bibliotecas de minha infância; o Golem, que entrou prematuramente em minha vida; os duplos; os autômatos homicidas; e já no umbral da despedida infantil, o monstro filho de Mary Shelley e do doutor Frankenstein; além de Césare, a horrenda criatura de Caligari (Filme "Gabinete do Dr. Caligari" (1919) - Expressionismo Alemão*).


O menino é o pai do homem, e quem ler estas linhas reconhecerá algumas das atmosferas que surgem de meus contos e de alguma novela (onde se trata de vampiros que, coisa estranha, não circularam muito nas noites de minha infância, sem dúvida por falhas bibliográficas). Se o medo cobriu de infelicidade minha meninice, por outro lado multiplicou as possibilidades de minha imaginação e me levou a exorcizá-lo através da palavra; contra meu próprio medo inventei o medo para outros, resta saber se os outros me agradecerão. Em todo caso, creio que um mundo sem medo será um mundo demasiado seguro de si mesmo, excessivamente mecânico. Desconfio dos que afirmam nunca ter sentido medo; ou mentem, ou são robôs dissimulados, e que medo me dão os robôs. (Julho de 1983)


Julio Cortázar (1914-1984), argentino, é um dos escritores mais importantes deste século (século XX). Autor de Jogo da amarelinha, Bestiário, História de Cronópios e de Famas, entre outros. Este texto foi cedido pela Agência EFE. Tradução de Reynaldo Damazio. (Não lembro de onde tirei este texto)

* - inclusão minha. Sobre a citação de Cortázar e o filme ao qual fazia referência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.