Preciosidades

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Amada América. Luís Pimentel



"Se papai me pega agora,/ de anágua e de combinação,/ será que ele me manda embora, / ou não?" 

Esta música é do Chico Buarque. E é a cara dela. A cara da América, a minha, quem dera minha. De anágua e de combinação. Às vezes, de peitinhos de fora, só de calcinha transparente. Às vezes, nem isto. América. Um nome, uma explosão, um continente. 

E se América me deixa agora? Vão para longe, pensamentos ruins. Como pode, meu Deus, um homem como eu, tão comedido, tão racional, moderado na bebida, xixi e cocô nas horas certas? Ouço uma canção que guardo ainda em bolacha. Sou dos tempos do vinil. América é geração CD: "Aos hipócritas que estão no júri,/tenho a declarar que não sou culpado, /nem sou inocente, de ter me envolvido com uma adolescente." Aldir Blanc. 

Será que ele também já amou uma adolescente? Sei que é bobagem misturar o criador com a obra. Acaba-se descobrindo que Marx batia na empregada, que Freud comia a própria filha e que Charles Chaplin era grosseiro e sem graça dentro de casa, um pai de matar o Carlitos de vergonha. 

Apaixonado por uma adolescente fogosa. O professor que sabe das coisas, conhece as artimanhas e manhas do mundo, se deixando levar pelo perfume e pelas labaredas que emanam dos corpos suados e sarados de suas alunas. 

"Vestida de azul e branco,/ trazendo um sorriso franco/ e um jeitinho encantador (...)/A normalista linda/ Não pode casar ainda..." 

Sim, eu ouvi Nelson Gonçalves. Só que era um menino. América substituiu há muito tempo o uniforme escolar por uma calça de brim azul, desbotada e até meio esfarrapada. Os tênis, com variações em cores berrantes, não lembram em nada os sapatos Vulcabrás sobre meiotinhas brancas. A blusa é mínima, tem decote generoso. Onde está o escudo do Instituto de Educação bordado no peito? A inocência não há mais e a normalista linda está em outra. 

É tão indisciplinada aqui, quanto na escola. Mexendo nos discos e nos livros, bebendo vinho no copo porque dizem que dá sorte. A terra desaba sobre os meus ombros quando alisa os pêlos do meu peito e pergunta, sonsa e sensual: - Quem foi que descobriu a América, que foi? 

Nem que o mundo caia sobre mim. Pede trégua quem está por baixo. O professor gagueja desarmado, apalermado, carente, solitário e inexperiente, apesar da idade. Conta os fios de cabelos brancos. Não são poucos. Feito criança, apaixonado por uma criança. Teve um tempo em que quis ser poeta, como todo mundo. 

América dos meus tormentos. Dezoito aninhos de charme, provocação e saúde, debutando diante dos olhos de todos os tarados do colégio ou do bairro. Chega à hora que chega, roubando o lençol e o travesseiro, querendo cada vez mais. Tão franca no gozo, sorrindo, gritando. Faz-me sempre lembrar a frase inusitada que ouvi num botequim. "Fulana gozou muito. Gozou feito uma cutia." Nunca vi cutia gozando. Nem sei se cutia goza. Mas acho que América goza feito uma cutia louca, endiabrada, daquelas que correm no meio do mato ou entre as árvores do Campo de Santana, no Rio de Janeiro. 

O mundo explode em chamas e América coleciona letras de música no caderninho e se diz "tarada pelos olhinhos verdes meio azuis e meio ardósia do Chico". Também "curte" Milton Nascimento, Marina e "rock pesado". Eclética e elétrica. Compreendo, o mundo também não passa de um enorme clichê. 

Achou por bem ficar com uma cópia da chave do meu apartamento. Achei por bem não negar nem discutir. – Facilita as coisas, você não acha? – Claro. 

Faço qualquer coisa para viver bem. Para cultivá-la e cativá-la. Para tê-la ao meu lado, com ou sem chave de minha casa. Já tem a chave do meu coração. Eu é que tenho tudo a perder. – Não sei se você é o homem da minha vida. 

Ainda mais essa, agora. Claro, quer me deixar inseguro, como se fosse preciso. Finjo indiferença e bom humor. – Problema seu. De minha parte, América, devo dizer que estou perdidamente apaixonado. Mas gostaria que você tirasse esse CD do Chico, para que eu pudesse ouvir um pouco de Pixinguinha. 

Não me escuta, mas não importa. Confere a posição impecável dos quadris e levanta a perna diante do espelho do armário. O pescoço para lá e para cá, em suaves movimentos. A coluna reta, a bunda empinada, as pernas escandalosamente definidas, meu Deus. Quem dera essa mulher me amasse loucamente. 

Desapareceu da casa dos pais há mais de um mês. Quase não sai do meu apartamento. Se abancou com os meus discos, passeia de calcinha e camiseta do quarto para a sala. Até na cozinha, o pé descalço sobre a mesa onde fazemos as refeições. Foda-se. Lá vou eu reclamar? 

Prepara um café, vez ou outra, "quando pinta a vontade". Vasculha meus livros e se acha no direito de achar Graciliano Ramos "um saco". Ofensa grave, só pode ser provocação. Mesmo assim, contudo e porém, vai ficando para a minha alegria. 

Qualquer sonho é melhor do que a insônia doentia. 

Tenho me afastado dos amigos de minha idade, para não ficar ouvindo conselhos dispensáveis e desnecessários. Depravado é a mãe de quem falou ou pretendia falar. Saibam, os senhores que estão no júri, que foi essa moça quem inventou desculpas para vir ao apartamento do professor, "fazer umas pesquisas". 

Ninguém acredita? Fodam-se todos. 

Amoleci demais. Estou bestamente perdido de amor, caceta. Comecei a beber além da conta e a sentir ciúmes, caceta. E a louca ali, dando pulinhos animados, se desmanchando toda para contar as novidades, caceta. De papinho com os amigos, esparramada no meu sofá, usando o meu telefone. 

- Porra, América. 

- Não estressa. 

- Caceta. 

Ontem recebeu uma ligação bastante suspeita. Desligou com um "até já, amizade", beijinhos para lá e para cá. Desconfiado, não fui ao colégio dar as minhas aulas. É a terceira vez que falto esta semana. E a sonsa, como se nada estivesse acontecendo, continua ajeitando descaradamente os quadris e levantando a perna até a altura do meu coração. Flecha logo, ingrata. 

À noite, disse que estava me achando triste. Fez perguntas e carícias, a mais pura inocência. Abriu um vinho e fez sanduíches, cantarolando um samba velho do velho Chico, um samba dos que eu ainda gosto: "O homem da rua, / vive só por teimosia,/ não encontra companhia/ mas pra casa não vai, não."
Fizemos amor por umas boas horas e América acordou feliz. Deu vários dos seus pulinhos no quarto e me serviu café na cama. Também me senti feliz, mas só até o primeiro barulhinho do telefone.
América atendeu e desligou rápido. Começou a arrumar as malas. Passaria uns dias numa praia distante, em companhia de alguns amigos. 

Caceta. 

Deu um beijo e bateu a porta. 

Não conheço esses amigos. Não conheço América. 

O segundo barulhinho foi para mim. O diretor do Colégio me dispensando, por abandono de serviço.
São dez horas de uma manhã sem graça. Procuro América de perninha levantada no espelho do armário. Nenhum pescoço em suaves movimentos, nenhuma bunda empinada. Não vejo a imagem dela, mas vejo a minha. Que horror. Os olhos estão sombrios e empapuçados.


Luis Pimentel nasceu em Feira de Santana (BA), em 1953. Vive no Rio de Janeiro desde 1975. Trabalhou em diversos jornais e revistas (MAD, Última Hora, Jornal do Brasil). Este texto foi transcrito do livro "Grande homem mais ou menos", de 2007. 

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