Preciosidades

quarta-feira, 31 de março de 2010

Naquela época tínhamos um gato. Nelson de Oliveira


Mas não o suportávamos. Ele cagava por toda parte, fazia ruídos a noite toda, esparramava o lixo na calçada e arranhava as almofadas do sofá. Por isso, nos livramos dele e compramos um cão.
Era um fox-terrier branco e saudável.
No primeiro dia em que o vimos, ele nos pareceu tão belo e atraente, tão orgânico, tão cheio de si e de promessas que imediatamente toda a família, em silêncio — quase um pacto de sangue —, jurou tolerar, nele, tudo aquilo que não havíamos tolerado no gato, todos os seus possíveis excessos, manias e atavismos. Mais do que isso, nós, a partir de então, passamos a desejá-lo exatamente assim: nu, sem coleira nem regras.
Nós o amávamos e o alimentávamos. Às vezes nós o colocávamos numa grande caixa de papelão e o levávamos conosco, naqueles deliciosos passeios pelo campo que nossa família costumava organizar nos fins de semana, a cada verão. Também lhe dávamos banho todas as segundas-feiras, religiosamente, após intermináveis sessões profiláticas sentados ao sol, quando procurávamos e eliminávamos as eventuais pulgas do seu pêlo, conforme instruções do veterinário.
Fazíamos tudo isso, mas, mesmo assim, ele se recusava a nos amar, a nos seguir pelas ruas do nosso bairro, a uivar para a lua em noites de lua cheia, a perseguir os cães menores e a rosnar diante de visitas e estranhos, como todo cão costuma fazer.
Seu nome era Sansão e seus olhos eram suaves e, ao mesmo tempo, ariscos, como os de um patriarça chinês.
Jamais ouvimos o seu latido durante todo o tempo em que viveu conosco. Jamais o ouvimos arrastar meias e chinelos pelas escadas, ou chafurdar na terra úmida do jardim após uma noite de chuva, ou urinar nos cantos da cozinha, ou derrubar os vasos e quebrar potes de porcelana também, coisas tão corriqueiras na vida de qualquer cão.
Pior do que isso. Além de um comportamento pouco ortodoxo, Sansão ainda possuía o inconveniente hábito de perscrutar nossas almas.
Frequentemente, durante uma conversa reservada com meu pai, ou com qualquer outro membro mais próximo da família, imaginando estarmos a sós, a portas trancadas, de repente pressentíamos um observador inoportuno analisando nossos sentimentos, nossos segredos. Bastava olhar sobre os nossos ombros para descobrir a acanhada presença de um cão, meio oculto na sombra de uma estante, feliz por participar de um acontecimento tão íntimo, tão particular.
Era como se ele possuísse o dom de transpor portas e paredes, apenas com a força do pensamento. Ele existia, era sólido e palpável, mas os olhos apresentavam uma coloração terrivelmente alucinada e transparente, como se neles, mergulhado em suas pupilas quase pré-históricas, estivesse presente, muito bem aprisionado, um reflexo claro e detalhado do dilúvio universal — a catástrofe da vida, borbulhando a mais de cem graus centígrados.
Mas isso não era fácil de ser percebido, não.
Poucos de nossa família possuíam paciência e desprendimento suficientes para chegar a essa incrível porém simples constatação. Apenas quando olhávamos fixamente dentro de seus olhos, sem piscar, sem desviar um milímetro sequer do nosso ponto de interesse, por horas a fio, é que percebíamos neles o início dos tempos, a formação do céu e da terra. Durante essa procura, os pensamentos iam fluindo livremente e, ao mesmo tempo, apaziguando-se. O despertar sobrevinha, ao que parece, após uma certa fadiga do pensamento, de um desamparo finalmente aceito e assumido pelas nossas mentes. Então, tudo se iluminava e o nosso cão deixava de ser um acessório, uma parte indesejada da mobília.
Finalmente percebíamos a sua real presença entre nós. Era a verdadeira revelação da sua essência, uma substância abstrata e dinâmica. Nela, nos perdíamos e nos deleitávamos. Por ela valia a pena suportar tudo o mais, a ausência de um latido nas manhãs de domingo, de um chinelo arrastado através da sala, de uma almofada cheia de incisões, de um passeio pelas ruas. Todavia, bastava nos distrairmos só por um segundo e — zás! — imediatamente tudo se desvanecia diante dos nossos olhos. As sagradas escrituras e a nossa completa compreensão delas eram substituídas, no ato, pelas patéticas feições de um cão. 
Ele, no mesmo instante, dava meia-volta e se recolhia em sua cesta acolchoada, sem ao menos se despedir, sem sequer, por meio de um aceno com as orelhas, com o rabo, dizer, sei o que estão sentindo, sinto o que vcês sentem, somos irmãos na dor e no conhecimento, na ilusão e no despertar, deixando, em cada um de nós, a desagradável impressão de que, talvez, um periquito teria sido bem melhor.
P.S.: transcrição via ‘MS Imaging’, do livro homônimo de Nelson de Oliveira, Companhia das Letras, 1998, São Paulo, 100 páginas.

terça-feira, 30 de março de 2010

segunda-feira, 29 de março de 2010

Geração do medo. Elizete Feliponi

Na minha infância, morei em um lugar no qual nascentes de água afloravam da terra. Existia um tanque com uma mangueira que trazia água direto do morro, a qual corria continuamente, 24 horas por dia, e eu, com a ingenuidade e curiosidade só possíveis a uma criança, ficava horas admirando a água e pensava: “Isso nunca acaba, pois vem da terra e do céu ao mesmo tempo”. Hoje sei que minha teoria estava equivocada.

Aprendi na escola que a água “era” inodora, incolor e insípida. Hoje, sei que a água tem cheiro, cor e gosto. Meus pais tomavam banho em rios. Eu já não tive esse privilégio, mas ainda via os vizinhos pescando nestes ambientes. Meus sobrinhos nem tomam banho e nem pescam em rios e aprendem na escola que a água é um bem finito. Perguntas rondam o imaginário de qualquer pessoa em estado de alerta: quando será o próximo terremoto? Até quando teremos água potável? Não temos respostas, mas uma fé inabalável na ciência, paralela à falta de credibilidade nas pessoas. Estas incertezas contribuem para que as novas gerações cresçam com o medo e com a falta de esperança.

O “bicho-papão” da modernidade assume diferentes formas e deixou de ser o monstro que se esconde embaixo da cama. Para as crianças de hoje, os medos são outros. Pais, que devem proteger, são julgados por jogar filha da janela; agulhas são usadas para tortura (instrumento e ação dignos da Idade Média). Temos, ainda, o medo da separação dos pais, do abandono e da violência urbana. Logo, crescer com tranquilidade, em um ambiente favorável, tornou-se uma “missão quase impossível”.

Ouvíamos professores mais experientes falarem: “A cada dois anos, percebemos mudanças de comportamento nos alunos”. Hoje, as transformações comportamentais, sociais, familiares e outras possíveis são diárias, e recebemos na escola uma infância já fragilizada pelo histórico familiar e social.

O mundo, que já passou por grandes epidemias e por duas guerras mundiais, possui outro desafio urgente: ensinar nossas crianças a terem a esperança de que um planeta sustentável é possível, além da confiança no ser humano. O que dizemos, assistimos ou lemos tem impacto direto sobre a infância. Vemos estampados nos rostos e ações das crianças a agitação dos tempos modernos. Elas podem não ter clara a noção de tempo, mas compreendem a angústia do adulto que assiste a filmes que retratam o fim do mundo com hora marcada e o terror das catástrofes naturais. Façamos escolhas: ou ensinamos o cuidado com o planeta Terra e a confiança no outro ou instalamos o medo coletivo.

Negligenciamos a consciência ecológica, os valores e a ética e evidenciamos os desastres, a violência e a sociedade corrompida. Para piorar, entregamos a educação das crianças para a internet, a televisão e sua programação medíocre. Em meio à falta de certezas familiares e sociais, a infância do atual século desenvolve-se com muitos desafios e pouca segurança. Deixamos um legado de destruição das matas, de rios poluídos e um sistema capitalista que escraviza e delegamos aos futuros adultos a nobre missão de salvar a Terra e todas as formas de vida existentes.

Antes, galinha era tema para música infantil e agora é a responsável pela gripe aviária; porco era personagem de fábulas e agora é o vilão da moléstia H1N1; os terremotos saíram dos livros de geografia para a vida prática; icebergs vagam pelos oceanos, anunciando o aquecimento global. Pegamos este mundo, embalamos para presente e enviamos às novas gerações. Não fornecemos a elas valores morais e manual de sobrevivência, mas queremos como sinal de recebimento do pacote a solução dos problemas ambientais e dos males que causamos. Sendo assim, tenho que repetir: é necessário que as crianças voltem a ser educadas em casa e ensinadas na escola, pois queremos – e, principalmente, precisamos – gerações criativas e conscientes, em vez de amedrontadas pela fragilidade da vida.

Do Jornal "A Notícia" - 26.03.10.


Elizete Feliponi
Pedagoga, formada pela UNERJ - Jaraguá do Sul/SC. Especialista em Políticas Públicas pela FURB e aluna especial no curso de Mestrado em Educação nas Universidades TUIUTI (Curitiba/PR) e FURB (Blumenau/SC). Atuou como professora de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Educação Especial e Educação de Adultos nas redes pública e privada de ensino. Palestrante e tutora.

domingo, 28 de março de 2010

As cartas para si. Júlio Gavinho


Crítico gastronômico. Sozinho em sua casa. Sozinho nos restaurantes a que se obrigava a ir. Tão erma solidão que deu para escrever cartas. Escrevia e-mails para a revista da qual era colaborador. Impessoais. Frios como saladas ou vichyssoyse. Escreveu carta primeiro para si mesmo. Escreveu para si como se fosse uma terceira pessoa que conhecesse muito e soubesse da incompatibilidade entre a vida e a expectativa. Escrevia com fidalguia e iniciava sempre dizendo que chegou aos seus ouvidos que ele não andava bem. Coisa de amigo em comum. Se os tivesse. Preocupado, e sem conseguir falar com ele já que não possuía telefone, decidiu escrever. Até porque determinadas coisas são mais fáceis de escrever do que dizer. Falava da saudade como se fosse a que sentisse. E na verdade o era. Dizia sobre os males da solidão e de viver consigo mesmo. Procurava mostrar o fato de viver com uma companhia que o amaria incondicionalmente – ele próprio. Deveria aprender a cozinhar, pois isso já não seria viver só, mas acompanhado de si. Dizia dos prazeres da ditadura televisiva e da seleção de cardápios. Chegaria por concluir que ser sozinho é então um benefício e não o malefício que sempre achou. Terminava dizendo que esperava vê-lo em breve animado com as possibilidades que a vida oferecia, e que em nenhuma hipótese poderia se negar a ela. Saudações, assinado ele mesmo.

Passou então a escrever a esmo. Escolhia endereços a esmo, sempre residenciais, e enviava. Nunca houve resposta. Escrevia dizendo que sentiu uma súbita vontade de escrever para alguém e que, aleatoriamente, escolheu esta pessoa. Falava de si, das coisas de que gostava. Das viagens que fez na mocidade, dos trabalhos que já teve e do ofício de crítico gastronômico. Escreveu por meses a fio sem resposta.

Como em um destempero de melancolia escreveu uma carta triste e desesperançada que dizia que de nada valia pena, pois dela não havia eco em sinais de tinta. Escrevia pelo prazer de sintetizar sentimentos que às vezes sequer existiam. Nada valia o exercício de aproximar-se de desconhecidos, pois nunca o deixariam de ser. Nada valeria o esforço de descobrir o outro lado. As sensações de quem o lia. O desejo de conhecê-lo não existia, pois dele ninguém respondia. Sua tentativa de aproximar a solidão do fastio de companhia era então redundante fracasso. Deixaria, pois, de escrever e dedicar-se-ia exclusivamente ao trabalho. Neste sabia que existia eco. Deste, certeza tinha de que as linhas eram percorridas por ávidos olhos, imaginativos de suas impressões sobre crustáceos, aves e carnes exóticas. Linhas, abandonava-as naquele momento.

Dito e escrito, enviou triste e sofrida carta de despedida a todos os que havia escrito em tempos.

Não tardou e recebeu uma carta perfumada. Perfumada como são as missivas cinematográficas. Por tal influência, fez de automático o gesto de levá-la ao nariz e aspirar bem fundo tão sutil e, certamente, feminino perfume. Abriu a carta e delicado papel se fez entre os dedos.

Respirava o perfume e lia, bela caligrafia, linhas emocionadas sobre deixar a solidão e criar conluio com o desconhecido. Dizia que valia sim o exercício diário do desconhecido, pois, questionava, o que é afinal o novo dia que nasce senão o mais retumbante desconhecido. Qual seria então o sentido de descobrir o outro lado, o leitor, senão pelo prazer de saber das sensações que desperta. Ela sim desejava então o fastio da companhia daquele que desconhecia, somente pelo encanto da descoberta. Queria fazer dele o último pedaço de desconhecido desbravado por um homem. No caso dela, mulher. A mente. O corpo. A alegria de ser sabedora que ele existia por trás daquelas linhas que a cativaram pelo prazer de lê-lo e por conhecê-lo. Ofereceu-se ao sacrifício. Marcou data e lugar para o encontro.

Deu-lhe endereço. Mapa do esconderijo de chaves. Apartamento em Copacabana. Ele compra rosas. Vermelhas. Abertas. Lindas. Volta à floricultura e compra mais. Quase chegando, volta e compra mais rosas. Baixo,meia-idade, bem vestido e bem-sucedido. Peso equilibrado com altura. Óculos . Cabelos curtos. Sapatos mocassins italianos. Sem perfume. Sem cheiro. Chega uma hora antes. Um apartamento amplo. Vazio. Na rua, os táxis buzinam. Sinteco com desenhos geométricos. Descobre uma bela banheira. Enche. Começa a debulhar as rosas e a espalhar pétalas pelo chão. O dia cai. Espalha pétalas de rosas na água morna da banheira. Ela chega. Um pouco acima do peso. Menor que ele. Cabelos levemente loiros. Pouca maquilagem. Vestido floral discreto. Bem-sucedida. Abre um sorriso ao ver o chão coberto de pétalas. Na rua, os pedestres andam. Abraçam-se. Beijam-se como se fosse faltar o ar de um ou de outro. Acalmam-se. Beijam-se agora explorando as cavidades um do outro. Trocam gentilmente saliva e sorrisos. Ela carinhosamente lhe tira a blusa, e ele, ato contínuo, gentilmente lhe abre o sutiã por dentro do vestido. Ela gosta da sensação do tecido em contato com os mamilos, agora comprimidos contra o peito dele. Na rua, os ônibus aceleram. Ele a olha tão profundamente que lê suas linhas na retina dela. Vê seus escritos estampados nos sentimentos dela. Ela sente a excitação de menina que já não é mais. Despem-se de calças. Pudores. Calcinhas. Passado. Cuecas. Desconfianças. São agora íntimos, ambos com pétalas de rosas a cobrir-lhes o dorso. Rolam. Na rua, os mendigos rolam. Ela abre-se como uma rosa úmida e dele recolhe o beijo. Composto de saliva. Pétalas. Dentes. Rosto. Gosto. Bom gosto. Convidado a entrar, entra. E ali, recebido e bem-vindo, percebe que suas cartas foram respondidas. Percebe que o ritmo da vida é o vagar. Balanço compassado. Dúvida se deve ficar ou ir. Percebe o sentido de suas linhas na tinta de lágrimas que agora dela vertem, e nas linhas de vida doloridamente escritas em suas costas. Escrevem linhas e linhas de um futuro incerto e imprevisível. Cartas que ainda escreverão para si. Na rua o carteiro corre para entregar outras cartas.

(“As cartas para si”, transcrita do livro “Homem procura menina e outras estórias”, de Júlio Gavinho (1968), Editora Germinal, São Paulo, 2004)

segunda-feira, 22 de março de 2010

A Arte de Escrever. Edson Aran


Frequentemente ouço a pergunta: “O que devo fazer para ser um escritor de sucesso e ter todas as mulheres aos meus pés?” Nesse momento, balanço a perna para que as garotas se desgrudem, coloco a mão no queixo e respondo: “Primeiro arrume papel!”

Escritores iniciantes costumam escrever na areia, nos muros e, desde o advento do computador, no vácuo. Mas, na verdade, você só precisa de lápis, papel e uma ideia na cabeça ou, se for o Paulo Coelho, apenas de lápis e papel.

Comece pelo alto esquerdo da folha e preencha o espaço em branco até o lado direito. Recomece logo abaixo da primeira frase e repita a operação até o papel ficar cheio de letras. Então pegue outro papel.

Escritores iniciantes devem começar escrevendo bilhetes, hai-kais, números de telefone e bulas de remédio. Só mais tarde é que devem se arriscar em romances, poemas épicos, listas telefônicas e bulas papais.

Existem dois tipos de livros: os de ficção e os de não ficção. Os de ficção são histórias que parecem reais e que sempre terminam mal. Os de não ficção são histórias que parecem irreais e que sempre terminam bem. Isso acontece porque, na ficção, o autor se vê obrigado a entediar os leitores com a falta de sentimento da existência. Já a não ficção só funciona quando os personagens deram algum sentido à própria existência. E depois ninguém sabe por que “reality show” faz tanto sucesso.

Um dos grandes ramos da não ficção é a autoajuda. Funciona quase igual. Só que na autoajuda, o autor, em vez de fazer o personagem andar até a porta, apenas dá as ordens; “Vá até a porta, cabeção, e vê se não tropeça!”

Teóricos da ficção dividem o texto, qualquer texto, em três grandes momentos: introdução, desenvolvimento e conclusão. No primeiro momento você introduz os personagens: Madame Bovary, este aqui é o jardineiro. Jardineiro, madame Bovary. Prazer. No segundo momento, você desenrola a ação. Jardineiro come madame Bovary, e a mulher fica falada. No terceiro momento, você conclui a ação. Madame Bovary morre. Jardineiro posa pra revista gay.

Só tente desestruturar narrativas depois de aprender a estruturá-las. Senão você vai ficar parecendo um poeta concreto, e ninguém gosta de poetas concretos.

Para começar a escrever você precisa de um tema. Se você for homem, pode escrever sobre o desatino da humanidade, a falência das ideologias, a importância do amor, a ausência de Deus e a falta de sentido na existência. Se você for mulher, pode escrever sobre macho e celulite.

Além do assunto, você precisa de uma ideia. Assunto é assim: “Homem conversa com cachorro e o animal o manda sair matando gente”. Já a ideia é assim: “Não há sentido algum na existência, principalmente quando se dá ouvido a cachorro”.

Terminar um texto é uma arte. O ideal é que tudo seja um grande arco e a cadência das palavras conduza naturalmente ao final. Mas, desde que a carrocinha de cachorro parou de recolher contistas, a coisa mudou um pouco. Agora os textos acabam de qualquer jeito, sem conclusão e até mesmo sem terminar a. 

(Edson Aran – O estado da nação, in “A arte de escrever - Não perca mais tempo! Tenha mulheres! Dinheiro! Sucesso!” – p.130/131, Revista Playboy nº 418 de 03/2010)

quinta-feira, 18 de março de 2010

Horizontes. Elaine Geissler


Composição: Flávio Bicca


Há muito tempo que ando
Nas ruas de um porto não muito alegre
E que no entanto
Me traz encantos
E um pôr-de-sol lhe traduz em versos
De seguir livre muitos caminhos
Arando terras, provando vinhos
De ter idéias de liberdade
De ver amor em todas idades
Nasci chorando, moinhos de vento
Subir no bonde, descer correndo
A boa funda de goiabeira
Jogar bulita, pular fogueira
Sessenta e quatro, sessenta e seis, sessenta e oito um mau tempo talvez
Anos setenta não deu pra ti
E nos oitenta não vou me perder por ai
não vou me perder por ai
não vou me perder por ai
não vou me perder por ai

P.S.: música que fez parte da peça teatral "Bailei na curva".

terça-feira, 16 de março de 2010

Mensagem de longe. Paulo Scott


(primeira parte)

tornam-se da classe vinte e seis homens e mulheres

que contratam o projeto sobrevida, se nos pirmeiros

cinqüenta minutos após suas mortes forem levados

a um núcleo de reabilitação e desde que seu corpos

não estejam demasiadamente mutilados serão

ressuscitados e viverão por exatas vinte e uma horas,

assim terão a chance de acertar suas vidas, resolver

os problemas burocráticos relacionados à herança e

ao pagamento das suas dívidas com o governo

meu trabalho é acompanhá-los


(em hipótese alguma posso me tornar seu herdeiro)


(segunda parte)


depois de tantos meses, você deve achar estranho

receber notícia minha, estou acompanhando uma

senhora muito rica, estamos há catorze horas juntos,

ela acaba de pedir quinze minutos a sós para

escolher a roupa do seu funeral, concordei... sabe...

aprendi muito nesse tempo, guardei um bom

dinheiro e já não escrevo aquelas coisas absurdas...

não era assim que você começava as discussões?,

quando me deito, escuto sua voz fraquinha

misturada com o vento da janela, minha rinite

piorou, contratei o novo vinte e uma horas para

nós, sardei a pele inteira de azul


com toda sinceridade, acho que desta vez

terei mais jeito para lidar com você


P.S.: extraídos do livro "Senhor Escuridão", 2006, Bertrand Brasil.

sábado, 13 de março de 2010

Bochincho. Jayme Caetano Braun


A um bochincho - certa feita,
Fui chegando - de curioso,
Que o vicio - é que nem sarnoso,
nunca pára - nem se ajeita.
Baile de gente direita
Vi, de pronto, que não era,
Na noite de primavera
Gaguejava a voz dum tango
E eu sou louco por fandango
Que nem pinto por quirera.

Atei meu zaino - longito,
Num galho de guamirim,
Desde guri fui assim,
Não brinco nem facilito.
Em bruxas não acredito
'Pero - que las, las hay',
Sou da costa do Uruguai,
Meu velho pago querido
E por andar desprevenido
Há tanto guri sem pai.

No rancho de santa-fé,
De pau-a-pique barreado,
Num trancão de convidado
Me entreverei no banzé.
Chinaredo à bola-pé,
No ambiente fumacento,
Um candieiro, bem no centro,
Num lusco-fusco de aurora,
Pra quem chegava de fora
Pouco enxergava ali dentro!

Dei de mão numa tiangaça
Que me cruzou no costado
E já saí entreverado
Entre a poeira e a fumaça,
Oigalé china lindaça,
Morena de toda a crina,
Dessas da venta brasina,
Com cheiro de lichiguana
Que quando ergue uma pestana
Até a noite se ilumina.

Misto de diaba e de santa,
Com ares de quem é dona
E um gosto de temporona
Que traz água na garganta.
Eu me grudei na percanta
O mesmo que um carrapato
E o gaiteiro era um mulato
Que até dormindo tocava
E a gaita choramingava
Como namoro de gato!

A gaita velha gemia,
Às vezes quase parava,
De repente se acordava
E num vanerão se perdia
E eu - contra a pele macia
Daquele corpo moreno,
Sentia o mundo pequeno,
Bombeando cheio de enlevo
Dois olhos - flores de trevo
Com respingos de sereno!

Mas o que é bom se termina
- Cumpriu-se o velho ditado,
Eu que dançava, embalado,
Nos braços doces da china
Escutei - de relancina,
Uma espécie de relincho,
Era o dono do bochincho,
Meio oitavado num canto,
Que me olhava - com espanto,
Mais sério do que um capincho!

E foi ele que se veio,
Pois era dele a pinguancha,
Bufando e abrindo cancha
Como dono de rodeio.
Quis me partir pelo meio
Num talonaço de adaga
Que - se me pega - me estraga,
Chegou levantar um cisco,
Mas não é a toa - chomisco!
Que sou de São Luiz Gonzaga!

Meio na volta do braço
Consegui tirar o talho
E quase que me atrapalho
Porque havia pouco espaço,
Mas senti o calor do aço
E o calor do aço arde,
Me levantei - sem alarde,
Por causa do desaforo
E soltei meu marca touro
Num medonho buenas-tarde!

Tenho visto coisa feia,
Tenho visto judiaria,
Mas ainda hoje me arrepia
Lembrar aquela peleia,
Talvez quem ouça - não creia,
Mas vi brotar no pescoço,
Do índio do berro grosso
Como uma cinta vermelha
E desde o beiço até a orelha
Ficou relampeando o osso!

O índio era um índio touro,
Mas até touro se ajoelha,
Cortado do beiço a orelha
Amontoou-se como um couro
E aquilo foi um estouro,
Daqueles que dava medo,
Espantou-se o chinaredo
E amigos - foi uma zoada,
Parecia até uma eguada
Disparando num varzedo!

Não há quem pinte o retrato
Dum bochincho - quando estoura,
Tinidos de adaga - espora
E gritos de desacato.
Berros de quarenta e quatro
De cada canto da sala
E a velha gaita baguala
Num vanerão pacholento,
Fazendo acompanhamento
Do turumbamba de bala!

É china que se escabela,
Redemoinhando na porta
E chiru da guampa torta
Que vem direito à janela,
Gritando - de toda guela,
Num berreiro alucinante,
Índio que não se garante,
Vendo sangue - se apavora
E se manda - campo fora,
Levando tudo por diante!

Sou crente na divindade,
Morro quando Deus quiser,
Mas amigos - se eu disser,
Até periga a verdade,
Naquela barbaridade,
De chinaredo fugindo,
De grito e bala zunindo,
O gaiteiro - alheio a tudo,
Tocava um xote clinudo,
Já quase meio dormindo!

E a coisa ia indo assim,
Balanceei a situação,
- Já quase sem munição,
Todos atirando em mim.
Qual ia ser o meu fim,
Me dei conta - de repente,
Não vou ficar pra semente,
Mas gosto de andar no mundo,
Me esperavam na do fundo,
Saí na porta da frente...

E dali ganhei o mato,
Abaixo de tiroteio
E inda escutava o floreio
Da cordeona do mulato
E, pra encurtar o relato,
Me bandeei pra o outro lado,
Cruzei o Uruguai, a nado,
Que o meu zaino era um capincho
E a história desse bochincho
Faz parte do meu passado!

E a china? - essa pergunta me é feita
A cada vez que declamo
É uma coisa que reclamo
Porque não acho direita
Considero uma desfeita
Que compreender não consigo,
Eu, no medonho perigo
Duma situação brasina
Todos perguntam da china
E ninguém se importa comigo!

E a china? - eu nunca mais vi
No meu gauderiar andejo,
Somente em sonhos a vejo
Em bárbaro frenesi.
Talvez ande - por aí,
No rodeio das alçadas,
Ou - talvez - nas madrugadas,
Seja uma estrela chirua
Dessas - que se banha nua
No espelho das aguadas!

Jayme Caetano Braun (*1924+1999 - Músico gaúcho, conhecido no Rio Grande do Sul como "El Payador")

sexta-feira, 12 de março de 2010

Pão Doce. Adriana Calcanhotto


(Letra e música de Carlos Sandrino)

Não adianta mentir pra mim mesma
Ficar me enganando, tentando dizer
Que nunca na vida, nunca na vida eu gostei de pão doce
Porque por mais que eu queira esconder
A verdade é que eu adorava pão doce
Não podia passar sem pão doce
Bastava ver padaria, que logo eu ia, que logo eu ia
Comprar
Não adianta mentir pra mim mesma
Porque no fundo, porque no fundo eu sei muito bem
Que essa história toda de não comer açúcar
Que essa história toda de não comer pão branco
Que essa história toda de viver de mel e pão integral
Isso tudo só foi começar muito depois
Depois de um tempo em que eu era
Tão completamente ingênua
Tão sem força de vontade
Que as doces delicadezas
De qualquer guloseima
Lânguidas me seduziam
E minha língua sofria
De incontrolável fascínio
Por cremes dourados
E frutas cristalizadas
Feito rubis incrustadas
Nas crostas crocantes dos pães
Mas hoje
Hoje tudo é diferente
Se eu olho pruma padaria, me ponho cismando, chego a duvidar
Como é que pôde um dia
Eu ter entrado tanto lá!...
Porque por mais que eu queira, mas que eu queira
Mentir pra mim mesma
Ficar me enganando, tentando dizer
Que nunca na vida, nunca na vida eu gostei de pão doce
Fazendo um exame detido, sendo sincera, eu tenho que admitir
Que a verdade, meus amigos
(pelo menos no que tange a trigos)
A verdade no duro, doa a quem doer
A verdade é que eu adorava pão doce
A verdade é que eu adorava pão doce
A verdade é que eu adorava pão doce...

terça-feira, 9 de março de 2010

O mal de Bartleby. Fábio Calvetti


A Síndrome das bolinhas de papel amassado.


O mal de Bartleby, uma síndrome que faz escritores desistirem para sempre de escrever. Por Fábio Calvetti (Revista Conhecimento Prático – Literatura. Edição nº 22)


Uma reportagem sobre a síndrome de Bartleby poderia começar falando sobre o livro que deu origem a seu nome. Não, seria muito óbvio. Poderia também iniciar-se instigante, citando autores que tiveram a síndrome, como Rimbaud, J.D. Salinger e Juan Rulfo. Não, ficaria bobo. Talvez uma citação polêmica fizesse a abertura perfeita. Por exemplo, Drummond falando “só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode deixar”. Não, talvez nada disso prestasse.


Na verdade, a Síndrome de Bartleby começa como este primeiro parágrafo: uma renúncia à escrita. Essa seria a doença dos escritores, a arte do Não, capaz de fazê-los abandonar a literatura para nunca mais escrever uma página. Muitas das vítimas escreveram clássicos e logo depois demonstraram os sintomas e desistiram das letras. Às vezes por medo, às vezes por achar inútil ou mesmo por uma autocrítica tão mordaz que paralisa qualquer frase.


O caso mais famoso vem do poeta simbolista francês Arthur Rimbaud. Ele começou a fazer poesia aos 16 anos e,com 19 já havia escrito livros importantes, como “Uma temporada no Inferno e Iluminações”. Neste momento, desistiu da literatura para sempre e decidiu viver uma vida de aventuras por países como Alemanha, Sumatra e Chipre. Assim como Rimbaud, muitos outros escritores abandonaram a literatura pelos mais diversos motivos.


O nome da síndrome surgiu a partir do conto “Bartleby, o Escrivão”, de Herman Melville, o mesmo autor de “Moby Dick”. Na história, Bartleby trabalha em um escritório de Wall Street e passa os dias a negar a própria existência. A cada tarefa que recebe, ele apenas afirma “preferia não fazer”.


O personagem que “preferia não fazer” tornou-se sinônimo para “escritores do Não”, por meio do autor espanhol Enrique Vila-Matas. No livro Bartleby e Companhia, ele disseca dezenas de autores que desenvolveram a síndrome e mostra que escrever é uma atividade de alto risco. O narrador da obra é um rastreador de Bartlebys e também sofre do mesmo mal, produzindo uma escrita fragmentária e cheia de lacunas.


Para Vila-Matas, renegar os livros, a escrita e justificar o silêncio requer mais imaginação do que o suicídio. Os escritores para sempre precisam suportar a cobrança e a pressão do público.


Os motivos para renunciar à escrita são variados. Alguns escritores descobrem que as palavras não são suficientes. “Talvez os sentimentos sejam inexprimíveis, talvez a arte seja um vapor, talvez se evapore no processo de transformar o que é exterior em interior”, escreve Vila-Matas.


Manuel Bandeira deixa essa impossibilidade clara em “Último Poema”: “Assim eu quereria o meu último poema/ Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais”. A metalinguagem dos versos mostra que é impossível ao poeta alcançar esse ideal. Alguns preferem desistir da escrita a admitir que o “último poema” é inatingível.


Existem mais razões para o silêncio: a sensação de que tudo já foi dito e só resta repetir, a impressão de que a literatura caminha para o seu fim, a falta de inspiração. Os motivos são infinitos, como deixa claro Bartleby e Companhia. Vila-Matas vai além de demonstrar a incapacidade de certos escritores, ele prova por meio de sua obra que ficar calado pode ser digno e elegante. E nos leva além: faz imaginar o número de clássicos na literatura que nunca foram e nem serão escritos.


segunda-feira, 8 de março de 2010

É possível se viver de teatro no Brasil? Fernanda Montenegro


“Sobreviver de teatro no Brasil. Alguém agüenta esta profissão apenas como ganha-pão? Todos nós trazemos um anseio de arte. Podemos não alcançá-la, a verdadeira arte. Mas esta é a nossa ambição e é isso que nos salva.


É possível se viver de teatro no Brasil?


É. É possível, sim. Claro que mal. Às vezes muito mal. Às vezes até nem se vive de tão mal. Às vezes o tempo fica bom e firme. Mas logo cai um furacão que te arrebenta até para o resto da vida. Tudo é instável e tenso. (...) Em qualquer profissão, se você conhece o ofício, há um momento em que se consegue um patrimônio de trabalhos prestados. O mais vem naturalmente. No teatro, não. Você faz exame todo dia. Cada vez que se estréia uma peça nova é uma sabatina geral e o que vale é somente a nota final.


(...)

É claro que você tem a obrigação de escolher sempre o melhor autor, o melhor grupo, o melhor diretor. Mas não havendo o melhor do melhor, fique com o bom, ou com o menos bom. Se tiver de escolher entre o protagonista de uma peça de Paulo Magalhães e o décimo papel de uma peça de Brecht, é claro que você tem a obrigação de escolher o melhor autor, para ser fiel a você mesmo e ao seu idealismo. Mas, para começar, para se exercitar, e muitas vezes para comer, não havendo a oportunidade do grande autor, aceite até mesmo o décimo papel de uma peça de Paulo Magalhães.


Agora, não faça dessas concessões uma regra. Da alternativa, um hábito. Por que aí você se acaba. Por incrível que pareça, num ambiente acanhado como o nosso, tudo serve para amadurecê-lo, profissionalmente falando. E o importante é fazer o décimo papel do mau autor com a mesma obstinada vontade de trabalho que você empregaria num autor melhor.


(...)

Hoje, como ontem, acho pura perda de tempo a atitude de alguns profissionais que, conhecendo bem o chão em que pisam, afirmam: “Nunca mais farei tal autor, nunca mais farei isso ou aquilo!” Fará sim. Se não tiver outro melhor. Se não tiver pais ricos, mulher rica, marido rico, amantes ricos ou outra profissão, fará sim. Então é melhor não gastar saliva à toa... e trabalhar. No melhor, quando for possível o melhor.


No pior, quando só nos restar o pior, a má televisão, a dublagem, os shows de todos os tipos, filmecos sem categoria etc. etc. etc. Vale a pena a alternativa? Se você acha que não, abandone já a idéia de fazer teatro neste país.


(...)

Tudo nos atrapalha nesta profissão, a instabilidade econômica, o calor, os temporais, a falta de luz, as férias escolares, as festas natalinas, o carnaval, o início das aulas, a Semana Santa, as eternas crises políticas. E, sobretudo, a não necessidade de teatro que o brasileiro tem. Fazer o quê? ‘Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima’, como diz o samba.(...) O desafio é ser alguém diariamente. É, ano após ano, tentar manter a sua qualidade de gente e de profissional. É estar vivo aos 50, aos 60 e, se possível, aos 70 anos.”


(Fernanda Montenegro (1929), em discurso feito em 1967. Trecho transcrito da Revista Aplauso, Nº103, coluna de Luiz Paulo Vasconcellos)