Preciosidades

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Poesia: a precisão do impreciso. Ronald Augusto


Ronald Augusto
Cada poema é um lance no jogo de conquista — ou de negaceio — do impreciso. A rigor a poesia não esclarece coisa nenhuma, nem se presta à transmissão de mensagens sem rasuras. A mensagem poética tende a ser mais ambígua. Seu fazer, que é afasia (distúrbio de linguagem e de comunicação), parece pretender ficar rente àquelas zonas mais obscuras e insondáveis da experiência. Seu movimento sígnico em realidade busca não dissimular, mas sim problematizar um aspecto crítico da linguagem, ao qual não se dá a devida atenção, a saber: a crença infundada de que apenas uma linguagem articulada (a prosa, por exemplo) e seu corolário — uma objetividade desinteressada e quase transparente —, é capaz de iluminar e decodificar o íntimo dos seres e das coisas.

A anotação à margem do discurso verbal, logocêntrico por dever de ofício, não é senão um recorte de representação, uma angulação sobre determinado reduto da experiência com relação a qual estabelecemos um acordo semiótico de concordância entre signo e objeto. Ou seja, a palavra quando se localiza aquém do âmbito da função estética enfraquece seu impulso sugestivo. Mas o discurso verbal lógico- analítico ainda goza de crédito e, na maior parte do tempo, é por meio dele que imaginamos e construímos o mundo objetivo, que precisa funcionar a qualquer custo. Entretanto, semelhante linguagem não é suficiente para dizê-lo em toda a sua complexidade. Na prática, o resultado é bem outro. Tal pretensão de desvelamento acaba, ao contrário, projetando sombras de sentido e mal entendidos em tomo à totalidade dos objetos. Mais do que “signo tradutor por excelência”, a palavra como legenda se depara o tempo todo com as suas margens e sua arbitrariedade.

O poeta exercita formas vertiginosas do signo linguístico. Seu exercício e os instrumentos de expressão de que se utiliza, ao fim e ao cabo, serão considerados a partir de um objeto estético construído seja sob que motivação social, individual ou metafisica, enfim, desde os contornos de uma objetividade definida ou, ainda, desde uma subjetividade tomada precisa: o poema mesmo, ser de linguagem que apresenta uma coesão fundo-forma.

Segundo Wittgenstein, os “problemas filosóficos” são produzidos quando o que deve ser silenciado termina por ser dito. O que pode ser expresso com clareza, sem erros de linguagem (afasias) não seria, portanto, poesia. Por outro lado, diz-se com certa insistência — o que, aliás, deveria nos conduzir a uma suspeição ou resguardo com relação ao aspecto avassalador da afirmativa que segue — que a poesia “diz o indizível”. Mas, se Wittgenstein tem razão quando afirma que “acerca daquilo de que não se pode falar, deve-se silenciar”, como emprestar credibilidade ao supostamente indizível que a linguagem poética materializaria no lance de sua invenção? Efetivamente, a poesia diz o indizível? E como, em caso afirmativo, ela o diz?

A meu ver, a poesia propõe figuras visuais e fono-semânticas para esse festejado indizível. A partir dos equívocos e esquivos jogos de linguagem, das ilusões e convenções gramaticais, a poesia estrutura a sua linguagem lacunar entretecida ao silêncio (aqui entendido como valor musical, em posição dialógica com o som, a palavra enunciada). A signagem poética, ao fim e ao cabo, não diz o que se passa no mais íntimo do silêncio ou do vazio metafísicos. Com efeito. a poesia, a par de sua efemeridade (um acabar-começar de linguagem), tenta comunicar por meio de procedimentos estéticos e formais (rima, aliteração. paronomásia, metro, espaços em branco, etc.), isto é, tenta plasmar, ou presentificar como coisa-pensamento, como signo, aquilo de que, antes, não se podia falar. O indizível se resolve, ou passa a ser aludido, então, num poema: silêncios e vazios ativos, corpóreos. O que devia ser silenciado alcança uma formulação simbólica possível, uma estrutura mensurável: o leitor se abandona à metáfora de uma “música calada” informada por um ritmo. O poema projeta a sua ambigüidade de som e sentido sobre as tensões de filosofemas fruíveis.

Ronald Augusto, poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983); Pua (1987); Kânhamo (1987); Vá de Valha (1992); Confissões Aplicadas (2004); e No assoalho duro (2007). Dá expediente no blog WWW.poesia-pau.blospot.com


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