Preciosidades

sábado, 29 de janeiro de 2011

Voyeur: noite (reeditado) - Otto M.

O vento soprou forte. Desta altura, a rua tinha agora um aspecto monástico. Ao invés de árvores atapetadas de orvalho: árvores de cimento prenhes de luz. Eram como São Franciscos, com seus halos, que se curvavam ao pé dela em deferência à procissão de silêncio que por ali passava. Não se sabia bem ao certo onde acabava o pavimento de paralelepípedos e onde começava a perna do cachorro pulguento que nadava pela calçada encoberta de neblina e fumaça. Tudo tão confuso e amalgamado quanto o próprio pensamento humano. E o homem desconhecido vislumbrava aquilo. Parecia-me mais um salgueiro desgalhado postado na soleira da casa abandonada, que não tinha outra função senão impedir a entrada de gatunos ou de quem quer que seja que a tanto intentasse.

Pedro deitou-se sob os alvos lençóis, apagou as luzes e, fugazmente se lembrou dos lampiões que ficavam acesos durante a noite quando era criança. Em seguida, lembrou-se do irmão, que dormia a seu lado, e que agora dormia na sala, num retrato da parede. Não pensou mais na volatilidade gloriosa da vida, não tinha aquele espanto ao relembrar o fato de que centenas de pessoas estariam, naquele mesmo segundo, morrendo dramaticamente, ou pior, se suicidando, se casando com amores explosivos, nascendo radiantes, cruzando avenidas, comprando flores ou comendo abacates com graciosidade ao redor do mundo. A alma, finalmente, voltou-se para dentro daquelas paredes, daquele corpo, daquela realidade que, mal sabia ele, era medíocre, e era sua, e era a de todos. Viu, então, a moça triste dos óculos de aros de tartaruga fechando o livro, emitindo um som surdo. E o cigarro de palha do homem desconhecido apagou.

---ooo----
Atibaia,
Primavera de 2007

Dica para ouvir durante a leitura:

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