Preciosidades

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

A Guria do Lago. Alma Welt



Durante o verão eu costumo ir nadar muitas vezes no poço da cascata de nossa estância, local encantado junto com o bosque, o jardim e a pradaria, enfim, todo o cenário da minha infância, que inclui o casarão, naturalmente, e que eu chamo de meu pampa. E tenho o hábito desde guriazinha, na verdade, de despir-me completamente, de banhar-me nua nessas águas límpidas, cristalinas e calmas, que somente se agitam no sopé da cascata, local todo ele cercado de pedras de todos os tamanhos, e de samambaias, líquens, e plantas belíssimas. Ali os pássaros se banham, e as borboletas adejam, juntando-se no solo de uma prainha, cuja areia dourada deve possuir alguma substancia salina que as atrai. Foi ali que ocorreu fatos que tiro de um lugar especial do coração, já que não posso confiar na memória infiltrada de sonho.

Banhando-me sempre nua, nunca pude conceber outra maneira de mergulhar nessas águas translúcidas, que me fizeram ver sua magia, malgrado um acidente, que contornei, apesar de tudo, para não considerar-me uma vítima. Não falarei mais daquilo.

Uma linda manhã, dirigi-me para o poço, fruindo todas as impressões desde o levantar da cama, o lindo caminho, e a chegada no maravilhoso local, jóia desta estância, desta região. Logo após mergulhar nas águas frescas, deliciosas, cheias de uma energia telúrica (que me mantêm com o aspecto dos meus vinte anos pelo menos), ao emergir resfolegando, dei de cara com uma linda figura sentada sobre a pedra grande, arredondada, em que costumo deitar-me para secar, de olhos fechados, para ouvir os sons todos... em delicada sintonia.

 Tratava-se de uma guria, que eu nunca vira antes. Nua também, como eu, mas morena, luzidia, de longos cabelos negros escorridos, de maravilhosa beleza. Como eu nunca a tinha visto antes, por ali, ou em qualquer outro lugar? Aproximei-me fascinada, enquanto ela sorria para mim, esperando-me. Erguemos nossos braços lenta e simultaneamente e tocamo-nos no rosto e no seio. Sempre sorrindo, uma para outra. Eu tinha a impressão de estar vendo meu reflexo, em outra luz, em outro tom, não sei, um sensação misteriosa, que me assustaria se não fosse acompanhada pelo tato real, sentido em meus dedos em minha palma, da tepidez daquele belíssimo corpo juvenil, de ninfeta morena. Não me ocorreu perguntar-lhe nada, nem sequer um previsível “quem és?” 

A guria mergulhou e nadou comigo toda a manhã , me pareceu, rindo, com gargalhadinhas cristalinas, borrifando água uma na outra, num indizível prazer lúdico e um tanto sensual, cheio de toques furtivos ou casuais, e... arrepios. Não me recordo de nada mais encantador e prazeroso na minha vida do que aquela manhã pueril, inocente e erótica a um tempo.

Então subitamente ela perturbou-se, ficou séria, parecendo auscultar algo mais dentro de si do que fora, deu-me as costas saindo da água, pisando a areia da prainha e penetrando na mata sem olhar para trás, nua como estava. Eu fiquei espantada, estranhando aquilo, principalmente por não vê-la vestir-se, mas logo imaginando que ela estivesse acampada no bosque nalguma clareira onde alguém a esperava, que sei eu? Logo me veio uma sensação esquisita, e fiquei triste e um pouco frustrada, por não ter trocado uma palavra sequer com a guria, não ter ouvido sua voz, e sabido seu nome. Quem era ela?

Não mais a encontrei, por mais que voltasse ao poço da cascata todos os dias. Começou a me bater uma espécie de nostalgia, de saudade, uma sensação de irrealidade frustrante. Comecei a duvidar do acontecido e a cogitar que pudesse ter sido apenas um sonho matinal encantador, fruto da minha necessidade de ter uma irmã de minha idade, com quem pudesse me identificar, já que Rôdo, meu irmão e companheiro, era o oposto complementar, o bichinho macho que me atraía e fascinava como uma amostra atenuada do brutal universo masculino que me rodeava, apesar das minhas duas irmãs, mais velhas. Um dia fui convidada por meu pai, a acompanhá-lo na visita a um vizinho estancieiro, que eu não conhecia e de quem somente ouvira falar como um homem que meu pai apreciava e de cuja mulher tratara e até fizera o parto, no tempo em que ainda exercia a medicina.

Acompanhei-o por natural curiosidade e também porque não perdia oportunidade de estar com meu pai, e aprender a vida com ele, conhecer outras pessoas... reais. No casarão da estância do nosso vizinho, que me pareceu mais velho e mais decadente ainda do que o nosso, eu olhava para todos os lados, curiosa, e esperando na verdade encontrar algo que eu não sabia o quê, talvez uns piás, ou uma guria, os filhos e netos do estancieiro. Afinal, enquanto meu pai tomava um chimarrão da hospitalidade com o seu compadre de imensos bigodes, eu notei um porta-retratos em cima da lareira, e fui estranhamente atraída para ele , levantei-me do sofá e fui até ele e peguei-o nas mãos. Era ela! A guria do poço! Ela ali estava, linda, igual eu a vira, mas vestida de chinoca para um baile, e radiante, com tranças com fitas dos dois lados da cabeça. Quase deixei cair o retrato, emocionada, e sem refletir interrompi os adultos perguntando:

- Quem é ela? Senhor, onde está ela! Quero vê-la, ela está aqui? - Eu apontava o retrato e virava-o para o meu hospedeiro, como se fosse preciso...

Meu pai franziu o cenho, sério, e olhou o seu compadre que me tomou o retrato das mãos, olhando-o tristemente, acariciando-o e dizendo:

- Esta é Larinha, que tu fizeste o parto, trinta anos atrás, mais ou menos, não é Werner? A querida Lara... que falta nos faz! Aquilo matou a minha mulher. E quase a mim também. Mas não falemos mais nisso. Vocês almoçam conosco?

FIM

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